Me diga: Tu estás mesmo surpreso que tenha sido assim? Tu não sabes que o amor é essa coisa de pontas que fere, arranha e rasga? Não me diga que mentiu pra mim e pra ti e no fundo acreditas naquelas novelas mexicanas, naquelas literaturas bobas, fúteis, onde o amor é tratado como uma flor etérea! O amor, meu caro, você bem o sabe, é lindo, mortal e assustador como uma lâmina cruzando os céus de Tarantino.É como uma fogueira ardente no meio da tempestade de gelo,um oásis inflamado em chamas. Seu calor vai sempre nos salvar as vidas frias, incendiar a geada nas veias. Caminharemos para ele feito loucos para o conforto das labaredas,mas uma hora ou outra, um dos dois, ou dos três, vai perder a medida como os insetos em volta da lâmpada,até morrermos ao contato de sua luz cortante, e explodirmos divinamente belos, como estrelas em colisão com um sol, numa morte perfeita.
Ah, faça-me o favor, não me venha com esse lenga-lenga de tua auto-comiseração. Eu e você sabemos que você fez porque quis, porque não consegue viver sem emoção, sem o perigo lhe riscando a faca na garganta. Seu vício sempre foi o mesmo que o meu: a intensidade.
Para onde você está indo? Não vá por aí! Você não sabe que esse caminho é o correto? Por acaso você não se conhece? Você não sabe que logo se entedia com o “certo”? É pro lado de lá que lateja, é para o lado de lá que é arriscado, é pra lá que a aventura te chama com todos os seus excitantes venenos, sabores, cheiros. É para o outro lado que os teus sentidos explodirão, que a taquicardia vai se apoderar do teu coração, que a adrenalina e a surpresa vão se hospedar na tua corrente sanguínea,te dilatar as pupilas. É do outro lado que está a boca mais rubra, que se rasgam sedas, incendeiam celeiros. Lá, há uma igreja hedonista de freiras obscenas, com promessas de paraísos artificiais, onde anjos de peles e cabelos multicores riem, dançam, bebem, e se banqueteiam sem culpa nenhuma, puros e livres como Lolitas, Dorian Grays e as musas das literaturas mais embriagantes.
Não olhe pra esse lado! Aí mora o conforto, a rotina e todos os seus quartos trancados e sem iluminação, tudo aquilo que em algum momento vai te sufocar. Não se iluda. É para o outro lado que há paredes vazadas e vestidas de colagens psicodélicas, quadros em preto e branco de semi-deuses da arte, anjos caídos exuberantes e plenos que cortejam o perigo o tempo todo. É pra lá que no final vai doer, vai sangrar, mas tu vais continuar vivo, e em algum momento tu vais quebrar a cara. Nós dois sabemos que é assim que você gosta. Então, poupe-se e aos outros desse desgaste e vá logo para o outro lado, e por favor, não leva ninguém contigo. Não envolvas ninguém em tuas experiências de construção pessoal, na fome antropológica das tuas descobertas. Ninguém precisa mais sofrer pra que você se descubra, é um preço muito caro, paga-o sozinho.
Como? Ela disse que correria o risco? Ela não sabe o que está dizendo… É que o amor torna as pessoas míopes, cegas, e às vezes as enfraquece. É uma carga pesada para ombros tão estreitos como os nossos. Talvez não estejamos preparados para o seu peso, muito menos ela, de pele fina e semi-imaculada, sem os cortes que tu já levou, sem as navalhadas que tu conheces e que te deram essa casca mais dura e resistente.E, olha que eu te conheço como poucos e sei o quanto, ainda assim, você às vezes sangra nas madrugadas.
Ela continuou dizendo isso? Você lhe disse que pode doer muito? Ela sabe que depois ela pode se dilacerar e definhar, mesmo ainda estando com o sonho entalado na garganta?
Você disse para ela que o amor é o paraíso que é sempre véspera do inferno infalível? Que ele é um abismo com asas, que debocha da entropia e da dor,mas é parente sanguíneo de ambas, mesmo com todo seu gosto e verniz de eternidade? Você certamente já viu aquelas construções antigas: igrejas, palácios, mosteiros. Já reparou que, mesmo estando quebrados, abalados pelo tempo, como eles são bonitos, sempre à beira de desmoronarem? Diz pra ela que o amor tem essa beleza trágica.
Me diga: quando ela te disse que era amor, é mesmo o amor por ti ou desamor por ela mesma? Certifique-se da diferença, e tenha certeza que, depois vão te acusar de mentir, de ser frio. Vão dizer que você é mal, dissimulado, calculista… esteja preparado.
Você sempre se pune. Não sei quem é mais incompetente: elas que mentem em dizer que não se importam de sofrer ou você, que morre de culpa depois…Olha pra ti agora, ouvindo essas canções que deixam gosto de sangue na boca, fazendo esses versos cheios de hemorragia. É uma caneta ou de um punhal que tu precisas pra abrir essas feridas? Prometa-me que logo que você terminar essa autofagia, vai sacar do coldre aqueles versos que costumava parir, com a beleza da nudez e o constrangimento que ela provoca aqui nesse Saara que tu vives, onde a aristocracia desfila medíocremente com seus casacos de pele debaixo desse sol infernal. E, não esqueça de colocá-los numa frágil redoma de vidro, encostados no muro, porque você sabe que eu acho que verso bom é verso que incita o apedrejamento e a comoção. Considere um atestado de sobrevivência do suicídio emocional que você se inflingiu, harakiri interior, meu caro.
-Eu prometo…
Diga pra ela que a história contada depois de tudo, no noticiário, vai ser assim: “O amor lhe convidou pra sair numa noite perfeita, lindo e perfumado, com seu sorriso de gigolô sedutor. Levou-a pra dançar e rir. Já na suíte, entre um trago e outro, lhe beijou semi-nú, semi-deus. Rasgou sua roupa com mãos e dentes,lhe tratou como uma vadia, romanticamente. Sussurrou-lhe frases doces e indecentes, a fez gozar a noite toda e colocou a moça pra dormir. Ao acordar… boa noite Cinderela! O amor lhe roubou tudo” . Se ainda assim ela insistir em seguir contigo, pelo menos não faça promessas que eu e você sabemos que tu não vais cumprir, mesmo sabendo que é isso que ela quer ouvir e, mais importante: tenha certeza que ela saiba que amar é estação de muita plenitude de tudo, de muitos excessos, de vertigens e coisas ao mesmo tempo. É dançar em chuvas de vinho e sangue, é andar em jardim de flores virginais e silvestres rosas carnívoras. Então, guarde um drink, uma polpa, um veneno, um antídoto, um buquê, uma dança, uma escada de incêndio, um colete à prova de balas, uma primavera e um punhal, para o amor de sua vida. E tenha certeza, se não fosse você a puxar o punhal, em algum momento, teria sido ela. É assim que funciona. Pergunte pra essas suas cicatrizes enormes espalhadas no corpo.
Pareço frio? Seco? Ela diria que sim. Você sabe que não. Foi você quem me levou pro hospital naquela vez que eu cortei os pulsos por aquele outro, foi você que pegou na minha mão quando eu tive que fazer aquela lavagem estomacal quando tomei aquelas pílulas. Você estava lá.
Já vou indo. Me procure quando parar de sentir pena de ti mesmo.
Junkie
São Luís,10 de março de 2009
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