Ele queria estar só, por um minuto que fosse. Abriu a janela como um presidiário que agride a parede para que uma réstia de sol entre e a lembrança dela pudesse ser expulsa , que fosse cegada, que fosse queimada. Queria talvez que um súbito vento a tragasse e lhe tirasse daquela sala onde seu fantasma arrastava correntes, brincos, argolas, piercings e uma saudade que o apunhalava com lâmina fria, e outros metais difíceis de derrreter.Queria encontrar algum bálsamo divino que apagasse as suas garras de aço do seu peito onde ela escreveu com suas unhas negras, declarações de amor em seu estranho alfabeto de sons, quando ele a possuía com a urgência dos que buscam a liberdade a caminho dos bosques, em disparada, como se montasse em um cavalo selvagem de longa crina loira, indomável e louco.
Escancarou as janelas. Como não conseguiu expulsá-la, ele se dirigiu ao banheiro. Abriu a torneira colocando a própria cabeça no jato de água, como um bêbado desejando curar-se de um porre homérico. Ele estava bêbado havia quase um ano. Ele estava bêbado dela. Um dependente da química de sua língua na dele, do vinho doce de sua voz, do tinto de sua boca na dele.
Naquele dia ele estava na sarjeta. Devia haver alguma forma de tirá-la da cabeça por um segundo. Não era possível que se quisesse alguém tanto assim.Não era possível que alguém ocupasse assim todos os quartos, salas, varandas, quintais da alma do outro. Deveria haver ainda, alguma parte de si mesmo em algum lugar dentro dele, algum porão, algum sótão, alguma passagem secreta que o conduzisse a si mesmo. Algumas raras vezes, ele se encontrava no quarto das visitas. Era isso: ele visita-se. Havia se tornado um visitante de si mesmo, em esporádicas situações onde sua inquilina permitia.
Olhou para o telefone que nunca tocava, odiou-o, e para salvar-se de uma esperança assassina, desligou-o. Finalmente pôde respirar.Olhou para os Cds espalhados pelo chão. apertou o play e a moça da voz melancólica dizia que estava cansada de brincar, que estava cansada de jogos.Ele também.Puxou o Cd rapidamente e jogou no meio da pilha, junto com os outros.Hoje ele não ia ficar mexendo na ferida.
Afrouxou as cordas da gravata e gritou seu nome de bruxa aos quatro ventos. Uma súbita calma de quem vomita lhe invadiu.
Encostou-se na parede e, escorregou as costas, até que se sentasse.Carregar o mundo sobre os ombros lhe cansava as pernas finas. Ergueu a barra da calça jeans e ao levantar a cabeça para o alto, reconheceu suas eternas companheiras de dor e de riso, suas testemunhas etéreas nas madrugadas: as nuvens rosa-chumbo.Elas sempre tinham o poder de filtrar os mais asfixiantes venenos, fazendo-lhe ver o que a sua hemorragia tinha de belo. Sua visão lembrou-lhe o período astral em que vinham vivendo até ali, entre uma temporada no inferno e outra, e como elas testemunharam sua surpresa. Ele que não esperava dela mais do que algumas luas novas, que fatalmente terminassem em quartos minguantes e não aqueles quartos crescentes em que vinham se deitando, de marés internas revoltas, quando eles, feito lunáticos se embrenhavam à procura de bosques particulares no meio da selva de pedra, com fomes de matilhas um pelo outro, governados por uma lua cheia e transbordante em que agora moravam e os governava hipnoticamente. Eles eram os dois corcéis rebeldes e loucos dentro da selva de pedra.
Suas confidentes começaram a partir, trazendo a princípio, um ouro desmaiado vazando e rasgando o vestido da madrugada,antes rosa e agora azul-chumbo, até deitar-se pelo firmamento, rasgando completamente o vestido e exibindo a nudez arrogante, opulenta e incontrolável do dia a lhe cegar. Saiu às pressas da varanda como um Drácula amedrontado. As manhãs sempre foram o seu vampiro, lhe sugando o silêncio com seus barulhos insuportáveis, lhe sugando a discrição com seu canhão de luz, apontando-o no meio da multidão como um ser estranho, explicitando sua tristeza, seu medo, sua fraqueza, agredindo seu conforto e roubando-lhe a ternura da penumbra.Mas se ele tinha a mão dela na sua, os dias eram noites cálidas. O toque de sua mão na dele, era um eclipse invencível e sereno indiferente à grosseria da manhã. Ela tinha esse dom do eclipse.
Entrou debaixo do edredon e improvisou uma noite. Iria dormir o dia todo. Era domingo mesmo, não trabalharia. De qualquer forma, sabia que em algum momento daquele dia, do outro dia, daquela semana talvez, ela apareceria com alguma razão justa para a distância, alguma desculpa perfeita, alguma confissão de raiva de algo que ele fizera, de medo ou insegurança de lhe perder, de alguma coisa que ele tinha dito ou não, de alguma atitude que esperava dele e não tivera. Era sempre assim.
Mas algo aconteceu naquela madrugada. Ele teve certeza. Não era possível querer alguém daquele jeito. Era um preço muito alto. Era caro demais.
Alguma coisa tinha que mudar.
Não era possível querer alguém assim.
nivandro costa vale
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